Por Nice Almeida
Eis aí uma pergunta que o ser humano faz desde os primórdios da sua história na Terra. Para longe de uma possível maiêutica socrática, onde se destinam perguntas seguidas de mais perguntas objetivando levar o ser consciente a descobrir a verdade por si mesmo, sem impor respostas, há pelo menos 2,71 milhões de brasileiros se indagando sobre isso e não é por mera curiosidade filosófica.
Para quem marcou encontro, nessa vida, com a Doença de Alzheimer, o estágio de esquecer a própria identidade e se questionar ‘quem eu sou?’ é a corrosão mental a levar ao mais profundo esquecimento de tudo o que foi vivenciado na encarnação atual.
O número acima é um dado do Ministério da Saúde, divulgado em 2024, sobre Doença de Alzheimer. Esta é a quantidade de brasileiros, atualmente, afetados por ela. A projeção indica que, até 2050, 5,6 milhões de brasileiros sejam diagnosticados com a DA.
O que parece assustador, sob minha ótica leiga é uma alívio. Não! O lenitivo não parte da equação numérica que se mostra espantosamente crescente, e sim por saber que a Doença de Alzheimer não é mais uma incógnita a levar médicos, pacientes e familiares ao desespero do desconhecimento de, ao menos, métodos paliativos para uma convivência decente com esse “transtorno neurodegenerativo progressivo e fatal da função mental”.
O conceito aspeado foi retirado do Ministério da Saúde. Até porque eu jamais teria o atrevimento de querer falar sobre o tema com a percepção médica, não tenho conhecimento para tanto. Bem, não tenho conhecimentos científicos a respeito da DA. Porém, a experiência de ver alguém que tanto me deu amor um belo dia olhar para mim e perguntar: “Quem é tu mesmo?”, essa eu tenho e posso dizer: é aterrorizante, paralisante.
Vó, sou eu, Nice, sua neta, filha da sua filha Irení, lembra?
É mesmo menina! Ah, minha filha, minha cabeça anda tão ruim, ando me esquecendo das coisas demais!
E cinco minutos depois… “Quem é tu mesmo?”. De novo a mesma pergunta seguida da mesma resposta.
O livro ‘A vida com a Doença de Alzheimer [uma travessia digna e humanizada’, do médico Carlos Eduardo Accioly Durgante, me fez voltar ao passado e eu aproveito que ainda recordo esse passado para relembrar cada palavra desse diálogo que tive na porta de um hospital, aqui em João Pessoa, com a minha avó Rita.
Naquele momento eu não percebi, mas essa conversa certamente doeu mais nela do que em mim. Minha avó sempre me cobriu com os maiores cuidados possíveis. Me amou incondicionalmente! Me protegeu o quanto pôde do mal que este mundo de provas e expiações nos leva a conhecer. Éramos amigas, muito amigas! Imagine você olhar para quem tanto ama e não reconhecer mais aquela pessoa.
Mais de duas décadas se passaram e somente agora eu olho para aquele momento com mais profundidade. Vejo que o pior momento para ela nem foi esquecer quem eu, e as demais pessoas que Ritinha tanto amou, éramos. Foi Carlos Durgante, 24 anos depois, quem me abriu os olhos para essa reflexão.
Como terá sido para minha vozinha olhar-se no espelho e não se reconhecer? Fazer a fatídica pergunta: Quem sou eu? Ela, que adorava colocar pó no rosto e um belo batom antes de sair de casa, de repente via-se e não sabia mais quem era aquela diante do objeto liso que refletia sua própria imagem, agora desconhecida.
Carlos Durgante me despertou para pensar esse momento não mais do meu ponto de vista e sim do ponto de vista da minha avó. [Reflito e paraliso].
Eu poderia escrever mais sobre toda essa experiência. Até achei que conseguiria. Devo, no entanto, fazer uma revelação: eu travei!
Jamais, nunca mesmo, conseguirei me colocar no lugar dela diante dessa doença. Isso é algo que somente ela conseguiria descrever.
Talvez, quem sabe, um dia eu volte a conversar com ela sobre isso em outro plano, o espiritual, e ela me conte de fato os sentimentos despertados por cada momento em que a Doença de Alzheimer foi tirando de sua vida as mais preciosas lembranças.
Por agora, só consigo dizer: vó, me perdoa, eu travei! E nem foi só na escrita!
