Ainda “Os tambores de São Luís”
Com os olhos fitos no retângulo da janela, a observar o horizonte que anuncia a escuridão da noite, Dom Timóteo do Sacramento, ainda Bispo da Capitania doMaranhão, já não acredita em perspectivas favoráveis a rondar o desfile de seu ofício, que o transtorno que o envolve – obra do Governador e dos maiorais de São Luís – começa a convencê-lo de que entre o discurso messiânico da Igreja e o entranhado uso de um povo, este último não hesita em consagrar a prática e dar rédea solta aos mauscostumes.
Trancado à chave em seu gabinete, sob a tristeza da solidão que o diminui, um observador desatento o julgaria idêntico a um beato sem provisão de fé e espiritualmente em pandarecos – e nisso incidiria no mais rematado engano. Bem pelo contrário, a nossa figura eclesiástica, já agora suportando as surtidas do destino, permanece convicta e ligada à sua causa espiritual, a qual, atirada a jorros nos púlpitos que lhe couberam, sucumbe concretamente na dinâmica dos passos dados.
No entanto, antes de seguirmos com o atual cenário do Senhor Bispo, é necessário trilharmos as pegadas firmadas pelo mesmo desde que assumiu o desempenho de suas funções episcopais. Nesse rumo, começando pelo efeito presente de um pretérito não muito distante, anote-se que em toda São Luís o burburinho ainda corre à solta. Nas naves das igrejas e esquinas de desocupados, passando pelas senzalas dos negros e alpendres das casas-grandes, o diz-que-diz é geral: Sua Reverendíssima, já à chegada, excedeu sem ajustes o tom da contestação ante o vício sem-pudor dos maiores da terra; inflamado, elegeu como objeto de censura a prática costumeira que, em jeito de força insuperável, punha ao redor dos matrimônios postos relações indignas de concubinato, as quais, desprovidas de bênção cristã, deliciavam o cenário da vida como o aroma doce e grato sabe regalar até os paladares mais exigentes.
Num tal quadro, bom é convir, não admira o barulho provocado por Dom Timóteo na altura em que, no ambiente mesmo das cerimônias que presidia, rompia a defender os valores da cristandade sobre um discurso de ataque ao já citado vício; Inclusivamente, nessa cena de irritação e apelo cristão, o bom Sacramento, com os olhos apertados de cólera, desfiava o novelo dos nomes que infamavam o espaço maranhense com concubinatos impuros e descarados acintes às leis do casamento e da Santa Igreja.
O que fica dito leva-nos a descrever mais propriamente o pico dos rompantes de Sua Reverendíssima na missão que avocou para si de combater os iconoclastas maranhenses da moral e dos valores cristãos mais básicos; iconoclastas estes que, desavergonhados, dado que os homens eram poucos, e as mulheres numerosas, exibiam à vista da vivência social uma larga pluralidade de concubinas e, no ócio do dia, ou mesmo sob o clarão do luar, faziam ranger de grata satisfação os leitos de jacarandá que serviam de palco – e pódio – às divertidas festas de luxúria e imoralidade.
Quanto aos rompantes do Senhor Bispo, estávamos a dizer, esses foram muitos e destemerosos, visto que se dirigiram aos tipos da localidade fartos de mando ou detentores de alguma consideração social. Ou seja, funcionários de alto bordo e a gente apatacada e vaidosa da urbe, feito presa amarrada à esparrela, caíram nas garras de Dom Timóteo do Sacramento, que não fez economia de discurso ante o sacrilégio e, solidário, correu a defender a causa das esposas ofendidas e invadidas na respeitabilidade de seus ninhos domésticos.
Assim, foi sob retumbante constrangimento que, em meio à celebração religiosa e a uma plateia crescida de devotos, alguns dos varões atacados pelo Senhor Bispo, apontados qual criminoso apanhado em flagrante delito, arrepiaram carreira porta afora, como a inculcar a mais solene indiferença perante as interpelações ali atiradas, as quais – e aqui entramos a especular – ou tendiam ao exercício sacro de atribuições eclesiásticas, ou acenavam à erupção de uma vaidade que se queria sentenciosa e observada.
Embora a realidade da vida testemunhe no sentido da última versão, pois o fio da existência revela o homem penetrado de vaidades que intentam reduzir o mundo aos próprios interesses, por amor a uma narrativa a salvo de imaginações destituídas de prova – à mingua, pois, de líquida certeza a respeito – assumimos a configuração de dúvida em torno do propósito que animou o nosso homem.
Seja como for, a vastidão do escândalo tomou proporções monumentais, pois, de seguida aos votos de protesto, Dom Timóteo não ficou alheio à permanência das relações irreligiosas – um atrevimento sem medida! – disparava o velho Bispo, e, avançando com truculência, atirou à prisão soma considerável de maridos prevaricadores e insistentes na consumação do pecado.
Aqui chegados, uma importante observação demanda registro: armado o tumulto na habitual pasmaceira da Província, para além da excitação do povaréu já referida, o próprio Governador e a Câmara – órgãos máximos da administração local – foram convocados a tomar assento no rumoroso incidente, que os ricos senhores de lá, não divergindo da realidade de senhores outros de outras terras, acreditavam que o expediente público existia para lhes anunciar o Éden em sítio doméstico.
Assim, instado a levantar pronúncia na fronteira entre a fé e os homens, ou entre o mau uso destes últimos e o avanço cristão de Dom Timóteo, foi com estratégia que o Governador da Capitania, ausente à ocasião, acionou o ouvidor-geral e o incumbiu da tarefa de solucionar o impasse que então ardia. Perspicaz, atendendo à forte influência da religiosidade sobre o terreno da incompreensão humana, em sua delegação tratou de prevenir que “veemências retóricas” – despedidas sem provas de respeito e dedicada atenção – indignassem o Senhor Bispo e, por consequência, pusessem o rebanho de fieis em aborrecimento e oposição aberta à iniciativa oficial.
O quadro acabado de referir exibe a habilidade política do Governador citado, demonstra com ares de convicção experimentada que a arte de governar envolve a evitação de atritos e a eleição de meios genéricos que não desemboquem na exasperação de confrontos armados; sendo comum, bom é de ver, tais práticas administrativas – ou táticas, talvez melhor – ligarem-se a uma espécie de discurso útil que manda os bons juízos aproveitar as virtudes do meio-termo e a conciliação sem traumas das divergências concretas.
No entanto, como um sol de pouca dura, que ilumina grandemente e rápido dá lugar à escuridão acachapante, a trégua anunciada logo se desfez, que o espírito de oposição, quando existente num dos polos do conflito, não faz armistício e tem o dom de aparelhar trincheiras. De volta à narrativa, aqui flagramos o ouvidor-geral em múltiplas e fracassadas tentativas de estabelecer conexão com Dom Timóteo, que não abria diálogos e insistia no encarceramento dos maridos ditos prevaricadores, daí despontando a inauguração da luta e a remessa de um sem-número de ofícios que – provindos do ouvidor-geral – ordenavam o relaxamento das prisões efetuadas.
Sem mais recuos, é tempo de avançarmos o relato que ora nos instiga. Fazendo-o, apanhamos o ouvidor-geral a dois passos de amalucar os miolos, que os insistentes ofícios então encaminhados não faziam mossa na inteligência de Dom Timóteo, o qual, como o solo infértil que rechaça a semente atirada à terra, não concedia réplica e, assim, desafiava o bom humor das Instituições já então envolvidas e sem escrúpulos de tolerar o afincado desatino alheio.
Posto o enredo nesses termos, ainda encarcerados os maridos perseguidos pelo velho Bispo, outra solução não se mostrava pertinente senão a pronta liberdade dos mesmos, a qual, amparada pela mão forte e impaciência do ouvidor-geral – que acionou o Tribunal do Juízo da Coroa –, logo se vê restabelecida em cena e a confrontar os brios eclesiásticos cá referidos.
No entanto, há juízos não se deixam absorver ante os sinais da derrota e, qual feras encurraladas e amantes do instinto, berram no ocaso como a denegar rendição e arrotar valentia, mesmo sob a límpida evidência de que forças lhe faltam para prosseguir na carreira de luta e resistência.
Assim, encarnando um espírito de rebeldia, Dom Timóteo avançou no tabuleiro com a única peça que tinha à mão: excomungou o ouvidor-geral e o Tribunal, praguejou a mais não poder e remoeu a liberdade então decretada entre rezas encarniçadas e pedidos de auxílio ao Altíssimo, que os padres-nossos atirados no altar são tributos oferecidos no caminho das bênçãos celestiais.
Esvaziado de tolerância, ainda a amargar os ditos destemperados de Dom Timóteo, o ouvidor-geral leva a furo ímpeto de retaliação que surge a reboque de grossos aborrecimentos, que o panorama da Província – já agora isento de perturbações – ainda contava o barulho e o ânimo de litígio do Senhor Bispo, cuja persistência em soltar a voz bem merecia rebate de força e capaz de silenciar os resquícios de oposição.
Assim, rápido, o ouvidor mobiliza o braço militar do capitão-mor e, trazendo à luz a pena de temporalidade – espécie de sanção existente à época –, intimida a vozearia de Dom Timóteo, que, por via do expediente imposto, vê-se confinado no Paço Episcopal, privado de suas rendas e criados, entregue, em suma, às moscas de seu ineficiente falatório, a observar, afinal, que a tábua das regras mundanas é influência irredutível na dinâmica do comportamento social.
É tempo de concluirmos e vamos fazê-lo brevemente. De retorno ao gabinete do nosso homem, ainda o encontramos entre a perspectiva de um horizonte sombrio e o incômodo na alma de quem se vê incompreendido. Imaginação a flutuar sob o balanço de vigorosas asas, Dom Timóteo observa as sombras da escuridão e nelas recolhe indicativos de um futuro de aflição e isolamento, que os olhos só vêem o conteúdo que guarnece e emociona o espírito.
Privado de alternativas, só a desilusão preenche-lhe a compreensão. Se num rebanho de fiéis estivesse, neste momento só o vazio e o silêncio observaria. Uma realidade amarga, um desejo de vingança e um velho terço à mão. Enfim, já agora a invocar o Altíssimo, como a anunciar que o espectro divino coroa-lhe a existência, Dom Timóteo, olhos rebrilhantes, palavras grandes soltas no ar, dá a partida por encerrada: excomunga a Capitania do Maranhão e toda a sua gente.
Eduardo Luna,
Advogado Criminalista, Mestrando em Ciências Jurídico-criminais

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